domingo, 2 de maio de 2010

Um domingo machadiano


Acordei tarde. Após um banho muito quente, tomei café e encarei os classificados. Circulei anúncios, fiz algumas ligações e parti para a única visita do dia.

Na Machado de Assis, calçada fronteira à sapataria, uma senhora de idade avançada parou subitamente e olhou para o chão. Outra mulher abaixou-se aos seus pés. A cena me atraiu pelo inusitado: cansei de ver pessoas ajudando idosos desconhecidos a atravessarem a rua; amarrando o tênis, era a primeira vez.

Enquanto esperava o elevador do Edifício Renânia, somei os algarismos do prédio para ver se a numerologia aprovava. Entrei no apartamento. Fui direto à janela, estranhamente gradeada. Conferi o sol e a vizinhança. Fiz a vistoria de praxe: abri torneiras, pressionei a descarga, observei piso, azulejos, disposição dos cômodos. Suspirei. Nem a numerologia, nem eu.

Manhã quase perdida, decidi visitar meu irmão. Atravessei o Largo do Machado e, no ponto em frente à igreja, senti o frio de julho. Comecei a vestir meu casaco. Primeira manga, ok. Passei a bolsa para o braço vestido e procurei encaixar a outra. Na terceira tentativa, uma voz suave me disse: “Deixa que eu te ajudo”. Olhei para o lado e a vi: uma mulher de aparência frágil, talvez com idade para ser minha avó. Meio constrangida, aceitei.

Começamos a conversar. Tinha levado frutas para a irmã, que, após fraturar o fêmur, não andava mais. “Ela não pode operar por causa da idade [pausa de suspense]: noventa e oito anos”. Não resisti à indiscrição... “Completei noventa”, respondeu. “Puxa, a senhora está ótima!”. “É de família”, acrescentou, entre humilde e orgulhosa.

Tinha quatro filhos, seis netos, oito bisnetos. Morava só. Falou da preocupação com o bem-estar da irmã, também viúva, porém sem filhos. Não conseguiu convencê-la a dividirem o mesmo espaço. Procurou algumas casas de repouso. Os idosos lhe pareciam tristes. A irmã, então, permaneceu no próprio apartamento com uma acompanhante.

Já conhecia parte de sua história quando o ônibus parou um pouco longe. A senhorinha caminhou no seu passo miúdo, e subiu sem qualquer ajuda. Continuamos conversando durante a curta viagem. Contei da mudança e da porção de apartamentos que vira. Ela comentou o quanto gostava de andar. “Este tênis não é bonito, mas é muito confortável”. Nesse momento, reconheci a idosa da Machado de Assis.

Saltamos. Mostrei o prédio de meu irmão. Dona Helena se apresentou e me apontou o edifício onde morava. “Estou sempre por aqui, passeando com minha cachorra”. O nome da labradora - impossível esquecer... - era Capitu.


2 comentários:

  1. Aconteceu em 2008. Dona Helena (nome fictício) não era a mesma idosa da Machado de Assis. Também inventei o número de filhos, netos e bisnetos. O resto é verdade (conforme a memória do dia), inclusive o nome da cachorra.

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  2. gostei muito também da parte da numerologia do ap...rsrs...parece alguém que conheço...hehe

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