quarta-feira, 14 de julho de 2010

Só em terra estrangeira


Assisti a Cartas para Julieta, filme “de mulher”. Embora seja fã de Gael García Bernal e Amanda Seyfried tenha lá seu carisma, fui ao cinema especialmente para ver Franco Nero e Vanessa Redgrave, curiosidade despertada quando li sobre o reencontro dos atores na vida real.

Não serei desmancha-prazeres contando o filme, então me atenho aos personagens reais. Vanessa Redgrave tem a beleza que o tempo lhe deu, sem grandes retoques. “Ela parece mais velha que ele”, dirão alguns. Pode ser. Nem vou replicar que ele pinta o cabelo ou que rolou uma plástica. Por mim está perdoado. Pois vivemos numa época em que a quase unanimidade dos homens "disponíveis" acima dos 40 só quer se relacionar com mulheres no mínimo dez anos mais novas.

Foi-se o tempo em que, mal atingia os 30, uma mulher achava natural engordar sem limites e vestir-se de senhora. Foi-se o tempo em que um homem de meia-idade parecia mais jovem do que uma mulher na mesma faixa etária. É bem verdade que os cabelos brancos neles ainda são considerados charme, enquanto nas mulheres são mais um indício de velhice. O mesmo vale para as ruguinhas, e todas as marcas dos anos vividos. Mas as mulheres assimilaram a injustiça cultural, e trataram de se cuidar em dobro e cada vez mais cedo, visando à saúde e à aparência.

Assim chegamos ao século XXI. Só faltou combinar com a ala masculina. Porque uma parcela considerável continua olhando suas contemporâneas como se elas fossem muuuito mais velhas do que eles, os deuses gregos. Mesmo que (os próprios) já estejam com os cabelos fugidios, a barriga indisfarçável, ou o (ex) garboso infante pendendo em direção aos pés. Para muitos, uma mulher madura é como um poste.

Um simples passeio em Veneza rendeu a uma conhecida - na casa dos cinquenta - "duas belas cantadas” (a globalização, dizem, já está acabando com esse mimo). Um amigo brasileiro me confidenciou que há diferença entre a mulher com a qual se envelhece (junto) e as outras: o envelhecimento de uma companheira é "aceitável", mas não o das mulheres em geral. Às mulheres em geral tanta coisa sempre foi negada; o direito de envelhecer é mais um item do pacote.

Por tudo isso, o romance reeditado em Verona – dentro e fora das telas - me fez decidir: quando me aposentar, não vou para Marte, vou para a Itália.





terça-feira, 18 de maio de 2010

Sangue azul


Na estação de Piedade, aguardava a composição para D. Pedro II. Avistou lugar numa ponta de banco, e lá acomodou sua derrière com certa folga.

Tirou um livro da bolsa. Trem demorado, leu algumas páginas.

O homem de estatura média, nem gordo nem magro, foi se aproximando. Cambaleante, e com hálito característico, fez menção de sentar-se ao seu lado.

Ora, pensou, se ele tentasse sentar naquele espaço mínimo, no estado em que se encontrava, fatalmente cairia no chão. Não era preciso ser gênio em Física para saber que a única maneira dele ocupar aquele banco era sentando pelo menos uma banda em cima dela. Ergueu-se num pulo, e foi se afastando devagar.

- Voocê aiií...
Fez que não era com ela.
- Levantou pooorrr quê? Porrr que levantou? Eu posso sabeeer?...
A moça olhou para a frente, e continuou caminhando ao longo da plataforma. O homem a seguiu.
- Tá pensando que tem o sangue azzuul?...
Andou mais um pouco.
- Teu sangue né azul, nããão... Teu sangue é verrrmelho igual ao meeeu...
Estavam quase no fim da plataforma. Havia um grupo de pessoas ali. Então a estudante fez o que não se aconselha nessas horas. Com a voz mais doce de que era capaz, disse a ele:
- Moço, eu me levantei porque não tinha espaço pro senhor sentar. Eu me levantei pra que o senhor pudesse sentar.
Silêncio.
O homem arregalou os olhos e a boca, assombrado.
- Ôoo... Você é... uma criatura... maravilhooosa...
Ela, séria.
- Me perdooa... Você me perdooa?...
Risos em volta.
- Uma criatura... maravilhoosa... Me perdooa...
O trem chegou. A jovem entrou correndo. A última frase que ouviu foi “Lábios de meeel...”.
O homem permaneceu na estação, aguardando o trem para Santa Cruz.


domingo, 2 de maio de 2010

Um domingo machadiano


Acordei tarde. Após um banho muito quente, tomei café e encarei os classificados. Circulei anúncios, fiz algumas ligações e parti para a única visita do dia.

Na Machado de Assis, calçada fronteira à sapataria, uma senhora de idade avançada parou subitamente e olhou para o chão. Outra mulher abaixou-se aos seus pés. A cena me atraiu pelo inusitado: cansei de ver pessoas ajudando idosos desconhecidos a atravessarem a rua; amarrando o tênis, era a primeira vez.

Enquanto esperava o elevador do Edifício Renânia, somei os algarismos do prédio para ver se a numerologia aprovava. Entrei no apartamento. Fui direto à janela, estranhamente gradeada. Conferi o sol e a vizinhança. Fiz a vistoria de praxe: abri torneiras, pressionei a descarga, observei piso, azulejos, disposição dos cômodos. Suspirei. Nem a numerologia, nem eu.

Manhã quase perdida, decidi visitar meu irmão. Atravessei o Largo do Machado e, no ponto em frente à igreja, senti o frio de julho. Comecei a vestir meu casaco. Primeira manga, ok. Passei a bolsa para o braço vestido e procurei encaixar a outra. Na terceira tentativa, uma voz suave me disse: “Deixa que eu te ajudo”. Olhei para o lado e a vi: uma mulher de aparência frágil, talvez com idade para ser minha avó. Meio constrangida, aceitei.

Começamos a conversar. Tinha levado frutas para a irmã, que, após fraturar o fêmur, não andava mais. “Ela não pode operar por causa da idade [pausa de suspense]: noventa e oito anos”. Não resisti à indiscrição... “Completei noventa”, respondeu. “Puxa, a senhora está ótima!”. “É de família”, acrescentou, entre humilde e orgulhosa.

Tinha quatro filhos, seis netos, oito bisnetos. Morava só. Falou da preocupação com o bem-estar da irmã, também viúva, porém sem filhos. Não conseguiu convencê-la a dividirem o mesmo espaço. Procurou algumas casas de repouso. Os idosos lhe pareciam tristes. A irmã, então, permaneceu no próprio apartamento com uma acompanhante.

Já conhecia parte de sua história quando o ônibus parou um pouco longe. A senhorinha caminhou no seu passo miúdo, e subiu sem qualquer ajuda. Continuamos conversando durante a curta viagem. Contei da mudança e da porção de apartamentos que vira. Ela comentou o quanto gostava de andar. “Este tênis não é bonito, mas é muito confortável”. Nesse momento, reconheci a idosa da Machado de Assis.

Saltamos. Mostrei o prédio de meu irmão. Dona Helena se apresentou e me apontou o edifício onde morava. “Estou sempre por aqui, passeando com minha cachorra”. O nome da labradora - impossível esquecer... - era Capitu.


sábado, 17 de abril de 2010

Clássico em família


Pai botafoguense, mãe flamenguista, eu precisava escolher um time. Era mesmo necessário? Claro, todo mundo tinha de ter um, garantiram meus irmãos. Dois deles alvinegros, um rubro-negro... Pensei uns dias e tomei a decisão, zelando pelo equilíbrio familiar, suponho.

Meu irmão mais velho não admitia que alguém neste mundo, ou pelo menos naquela casa, torcesse para outro time que não fosse o Botafogo. Desde pequeno, ele também adorava uma doutrinação. Então reuniu suas duas características mais marcantes no maior fanatismo futebolístico já visto em uma criança.

Durante toda a nossa infância, a música mais ouvida lá em casa foi o hino do Botafogo. Não tinha pra Chico Buarque, pra Roberto Carlos, não tinha pra ninguém. E não só em dia de jogo, mas todo santo dia, e muitas, muitas vezes. “Botafogo, Botafogo...”.

Aquelas notas insidiosas trabalhavam na minha cabeça com o poder de uma profunda lavagem cerebral. Foi um milagre eu não ter virado casaca, prova de que “uma vez Flamengo, sempre Flamengo”... Mas o inevitável aconteceu: aprendi o hino do Botafogo como quem aprende tabuada. Ou seja: para sempre.

Flamenguista que sabe de cor o hino do Botafogo?! Uma aberração, também acho. Deve ter sido pra resolver essas questões “psico-esportivo-existenciais” que inventaram o “segundo time”. O meu, por motivos óbvios, acabou sendo o da estrela solitária.



sábado, 10 de abril de 2010

De filmes e de lágrimas


Sempre admirou as pessoas que choravam sem pudor. De alegria ou tristeza, não importava. Sua família não era de liquefazer emoções, mas, sendo canceriana, jamais pôde negar completamente as raízes astrológicas. As novelas e, mais tarde, os filmes, foram sua válvula de escape, com um pequeno artifício.
Aprendeu a chorar para dentro, sem lágrima, técnica que não saberia ensinar. Embora não fosse imune à comoção, tinha uma vida árida em demonstrações lacrimais. Até aquela sessão na extinta sala da Tijuca, antes dos cinemas se tornarem evangélicos ou se mudarem para os shoppings.
O filme fora recomendado por uma amiga de gosto apurado e pouco choro, é bom que se diga. Era “Camila, símbolo de uma mulher apaixonada”, da cineasta argentina Maria Luisa Bemberg, baseado na real história de amor entre Camila O’Gorman, jovem da sociedade portenha, e o padre Ladislao Gutiérrez, em meados do século XIX.
Triste era pouco. Tentou segurar a onda, ou melhor, a lágrima, mas logo tateava um lenço no fundo da bolsa. Não encontrou e, na metade da sessão, apelou para a manga do vestido. Por fim, deixou que as lágrimas escorressem livremente. Terminado o filme, resolveu ir ao toalete para recompor-se. Precisava lavar o rosto, não podia sair do cinema naquele estado. Vai que encontrasse um conhecido na porta, ou a caminho de casa. Pior: se encontrasse um parente.
Ao entrar no banheiro feminino, deu de cara com pelo menos uma dúzia de mulheres, não na fila do xixi, mas aguardando a vez de molhar o rosto na pia. Algumas ainda choravam sem a menor vergonha, outras assoavam o nariz, outras davam tapinhas de conforto no braço mais próximo. Catarse coletiva feminina.
Saiu mais leve, e até hoje não sabe explicar o poder libertador de“Camila”.

Sem castigo, sem perdão

Foto de Sérgio Sakall *
A foto dos meninos de Soweto na matéria sobre a Copa trouxe a lembrança de meu primeiro ano escolar. Eu e meu cabelo curto, castanho dourado, de franja. A pasta de couro marrom, herdada de uma prima. A saia de pregas com suspensório, a blusa branca, os sapatos pretos de cadarço. Após o apito da fábrica, minha mãe no portão até que eu sumisse na esquina. Eu a pé, sozinha, atrasada, a caminho da escola. Onde aprendi a ler na Cartilha Moderna. E logo passei aos gibis do Pernalonga,“único coelho que ganhou o ‘Oscár’ ” (“que será isso?...”, pensava). Então devorei Mary Poppins, o livro.
A foto dos meninos de Soweto trouxe a lembrança do meu aniversário. Tia Edith me levou para escolher um brinquedo na loja ao lado do dentista. O sonho de consumo das meninas era a Guigui. Aproximando os bracinhos, ela gargalhava. Mas avistei Mary Poppins, a boneca. Com seu penteado, sua bota cor-de-rosa, sua sombrinha, seu vestido longo e rodado. Fiquei encantada. O vendedor e minha tia tentaram de todas as maneiras me convencer de que a outra era melhor. Inútil.
A foto dos meninos de Soweto trouxe a lembrança do que teria sido – mas não foi - minha primeira festa junina na escola, logo após meu aniversário. Uma dessas lembranças renegadas, separadas de mim como se fossem de outra pessoa. A duas semanas do evento, a professora pediu que as crianças formassem pares para a quadrilha. Sobramos eu e Waldomiro, único menino negro da turma. Isto não se aprende na escola, mas ali tive um gesto espontâneo do mais genuíno racismo infantil: sem muito alarde, simplesmente disse que não queria dançar com o colega. A professora insistiu, eu disse que não queria mais dançar. Não fui à festa, e nunca soube se alguma outra menina dançou com ele.
A foto dos meninos de Soweto me trouxe um remorso tardio. Imagino um menino negro rejeitado por uma menina branca aos seis anos de idade. Que influência teria exercido o incidente na sua formação? Guardaria lembrança tão ruim? Qual seria sua profissão? Teria casado, tido filhos? Estaria vivo? Não me lembro de seu rosto, não tenho qualquer fotografia.
Que fim levou Waldomiro? - penso, olhando a foto dos meninos.
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 *"Liberdade, Igualdade e Fraternidade", foto de 1998 (não é a foto do jornal, mas é muito mais bonita)
Obs.: com anuência do fotógrafo (obrigada!)

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Mas não parece!


Há quase vinte anos, ganhei de amigo oculto um disco de Marina Lima (foto) que trazia em seu encarte: Às vezes quando eu digo [a idade] alguém rapidamente responde: ‘mas não parece’, como se fosse ruim ter mais de 30 anos. Mas para mim (...) a infância, a adolescência, os 20 anos, eu os vivi até o fim para chegar a esta idade. Eu tenho 35 anos em 1991 e não há nada melhor do que isto”.


Aos 80 anos, minha mãe diz que ainda não viu nada e faz planos a longo prazo. Pois é cada vez maior o número de conhecidos ilustres - e ilustres desconhecidos - ultrapassando os cem. E, se a expectativa de vida aumentou, também houve mudança em todas as faixas etárias. A adolescência deu uma esticada até os 30, e a meia-idade... rejuvenesceu.

Hoje, dizem, os 50 anos são como os 40 de décadas atrás. Porém, como nem sempre as crenças acompanham os fatos, antigos conceitos ainda são invocados. Exemplo recente aconteceu no carnaval: elogios rasgados à beleza perene de Luiza Brunet, “aos 47 anos!”. Claro que Luiza continua linda, mas falaram de sua idade como se fosse Matusalém na avenida.

Embora reconheça o quanto alguns podem ser agraciados pela genética ou recompensados por hábitos saudáveis, em geral acho que a pessoa aparenta a idade que tem. E a diferença, para mais ou para menos, não costuma passar de cinco anos.

Não parece” me faz pensar no quanto os paradigmas ficaram defasados em relação ao processo de ampliação da longevidade e da própria juventude. Também me remete ao filme de Domingos Oliveira, no qual um personagem afirma que há três “idades”: infância, juventude e “você tá ótimo!”.

Para não alimentar ilusões, seria útil guardar as palavras da nonagenária escritora Benoîte Groult em Um toque na estrela (sucesso por aqui ano passado). No mais delicioso romance sobre este tema tão evitado, um alerta: "somos velhos aos olhos dos outros antes de sê-lo aos nossos próprios olhos".

Ilustrando a frase de Groult, a mãe de um amigo, então com oitenta e poucos anos, perguntou a ele certo dia: "Meu filho, o que será de mim quando eu ficar velha?".
Meu amigo respondeu: “Ih, mãe, deixa pra lá. Não pensa nisso agora, não!”.