sábado, 17 de abril de 2010

Clássico em família


Pai botafoguense, mãe flamenguista, eu precisava escolher um time. Era mesmo necessário? Claro, todo mundo tinha de ter um, garantiram meus irmãos. Dois deles alvinegros, um rubro-negro... Pensei uns dias e tomei a decisão, zelando pelo equilíbrio familiar, suponho.

Meu irmão mais velho não admitia que alguém neste mundo, ou pelo menos naquela casa, torcesse para outro time que não fosse o Botafogo. Desde pequeno, ele também adorava uma doutrinação. Então reuniu suas duas características mais marcantes no maior fanatismo futebolístico já visto em uma criança.

Durante toda a nossa infância, a música mais ouvida lá em casa foi o hino do Botafogo. Não tinha pra Chico Buarque, pra Roberto Carlos, não tinha pra ninguém. E não só em dia de jogo, mas todo santo dia, e muitas, muitas vezes. “Botafogo, Botafogo...”.

Aquelas notas insidiosas trabalhavam na minha cabeça com o poder de uma profunda lavagem cerebral. Foi um milagre eu não ter virado casaca, prova de que “uma vez Flamengo, sempre Flamengo”... Mas o inevitável aconteceu: aprendi o hino do Botafogo como quem aprende tabuada. Ou seja: para sempre.

Flamenguista que sabe de cor o hino do Botafogo?! Uma aberração, também acho. Deve ter sido pra resolver essas questões “psico-esportivo-existenciais” que inventaram o “segundo time”. O meu, por motivos óbvios, acabou sendo o da estrela solitária.



sábado, 10 de abril de 2010

De filmes e de lágrimas


Sempre admirou as pessoas que choravam sem pudor. De alegria ou tristeza, não importava. Sua família não era de liquefazer emoções, mas, sendo canceriana, jamais pôde negar completamente as raízes astrológicas. As novelas e, mais tarde, os filmes, foram sua válvula de escape, com um pequeno artifício.
Aprendeu a chorar para dentro, sem lágrima, técnica que não saberia ensinar. Embora não fosse imune à comoção, tinha uma vida árida em demonstrações lacrimais. Até aquela sessão na extinta sala da Tijuca, antes dos cinemas se tornarem evangélicos ou se mudarem para os shoppings.
O filme fora recomendado por uma amiga de gosto apurado e pouco choro, é bom que se diga. Era “Camila, símbolo de uma mulher apaixonada”, da cineasta argentina Maria Luisa Bemberg, baseado na real história de amor entre Camila O’Gorman, jovem da sociedade portenha, e o padre Ladislao Gutiérrez, em meados do século XIX.
Triste era pouco. Tentou segurar a onda, ou melhor, a lágrima, mas logo tateava um lenço no fundo da bolsa. Não encontrou e, na metade da sessão, apelou para a manga do vestido. Por fim, deixou que as lágrimas escorressem livremente. Terminado o filme, resolveu ir ao toalete para recompor-se. Precisava lavar o rosto, não podia sair do cinema naquele estado. Vai que encontrasse um conhecido na porta, ou a caminho de casa. Pior: se encontrasse um parente.
Ao entrar no banheiro feminino, deu de cara com pelo menos uma dúzia de mulheres, não na fila do xixi, mas aguardando a vez de molhar o rosto na pia. Algumas ainda choravam sem a menor vergonha, outras assoavam o nariz, outras davam tapinhas de conforto no braço mais próximo. Catarse coletiva feminina.
Saiu mais leve, e até hoje não sabe explicar o poder libertador de“Camila”.

Sem castigo, sem perdão

Foto de Sérgio Sakall *
A foto dos meninos de Soweto na matéria sobre a Copa trouxe a lembrança de meu primeiro ano escolar. Eu e meu cabelo curto, castanho dourado, de franja. A pasta de couro marrom, herdada de uma prima. A saia de pregas com suspensório, a blusa branca, os sapatos pretos de cadarço. Após o apito da fábrica, minha mãe no portão até que eu sumisse na esquina. Eu a pé, sozinha, atrasada, a caminho da escola. Onde aprendi a ler na Cartilha Moderna. E logo passei aos gibis do Pernalonga,“único coelho que ganhou o ‘Oscár’ ” (“que será isso?...”, pensava). Então devorei Mary Poppins, o livro.
A foto dos meninos de Soweto trouxe a lembrança do meu aniversário. Tia Edith me levou para escolher um brinquedo na loja ao lado do dentista. O sonho de consumo das meninas era a Guigui. Aproximando os bracinhos, ela gargalhava. Mas avistei Mary Poppins, a boneca. Com seu penteado, sua bota cor-de-rosa, sua sombrinha, seu vestido longo e rodado. Fiquei encantada. O vendedor e minha tia tentaram de todas as maneiras me convencer de que a outra era melhor. Inútil.
A foto dos meninos de Soweto trouxe a lembrança do que teria sido – mas não foi - minha primeira festa junina na escola, logo após meu aniversário. Uma dessas lembranças renegadas, separadas de mim como se fossem de outra pessoa. A duas semanas do evento, a professora pediu que as crianças formassem pares para a quadrilha. Sobramos eu e Waldomiro, único menino negro da turma. Isto não se aprende na escola, mas ali tive um gesto espontâneo do mais genuíno racismo infantil: sem muito alarde, simplesmente disse que não queria dançar com o colega. A professora insistiu, eu disse que não queria mais dançar. Não fui à festa, e nunca soube se alguma outra menina dançou com ele.
A foto dos meninos de Soweto me trouxe um remorso tardio. Imagino um menino negro rejeitado por uma menina branca aos seis anos de idade. Que influência teria exercido o incidente na sua formação? Guardaria lembrança tão ruim? Qual seria sua profissão? Teria casado, tido filhos? Estaria vivo? Não me lembro de seu rosto, não tenho qualquer fotografia.
Que fim levou Waldomiro? - penso, olhando a foto dos meninos.
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 *"Liberdade, Igualdade e Fraternidade", foto de 1998 (não é a foto do jornal, mas é muito mais bonita)
Obs.: com anuência do fotógrafo (obrigada!)

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Mas não parece!


Há quase vinte anos, ganhei de amigo oculto um disco de Marina Lima (foto) que trazia em seu encarte: Às vezes quando eu digo [a idade] alguém rapidamente responde: ‘mas não parece’, como se fosse ruim ter mais de 30 anos. Mas para mim (...) a infância, a adolescência, os 20 anos, eu os vivi até o fim para chegar a esta idade. Eu tenho 35 anos em 1991 e não há nada melhor do que isto”.


Aos 80 anos, minha mãe diz que ainda não viu nada e faz planos a longo prazo. Pois é cada vez maior o número de conhecidos ilustres - e ilustres desconhecidos - ultrapassando os cem. E, se a expectativa de vida aumentou, também houve mudança em todas as faixas etárias. A adolescência deu uma esticada até os 30, e a meia-idade... rejuvenesceu.

Hoje, dizem, os 50 anos são como os 40 de décadas atrás. Porém, como nem sempre as crenças acompanham os fatos, antigos conceitos ainda são invocados. Exemplo recente aconteceu no carnaval: elogios rasgados à beleza perene de Luiza Brunet, “aos 47 anos!”. Claro que Luiza continua linda, mas falaram de sua idade como se fosse Matusalém na avenida.

Embora reconheça o quanto alguns podem ser agraciados pela genética ou recompensados por hábitos saudáveis, em geral acho que a pessoa aparenta a idade que tem. E a diferença, para mais ou para menos, não costuma passar de cinco anos.

Não parece” me faz pensar no quanto os paradigmas ficaram defasados em relação ao processo de ampliação da longevidade e da própria juventude. Também me remete ao filme de Domingos Oliveira, no qual um personagem afirma que há três “idades”: infância, juventude e “você tá ótimo!”.

Para não alimentar ilusões, seria útil guardar as palavras da nonagenária escritora Benoîte Groult em Um toque na estrela (sucesso por aqui ano passado). No mais delicioso romance sobre este tema tão evitado, um alerta: "somos velhos aos olhos dos outros antes de sê-lo aos nossos próprios olhos".

Ilustrando a frase de Groult, a mãe de um amigo, então com oitenta e poucos anos, perguntou a ele certo dia: "Meu filho, o que será de mim quando eu ficar velha?".
Meu amigo respondeu: “Ih, mãe, deixa pra lá. Não pensa nisso agora, não!”.