sábado, 10 de abril de 2010

Sem castigo, sem perdão

Foto de Sérgio Sakall *
A foto dos meninos de Soweto na matéria sobre a Copa trouxe a lembrança de meu primeiro ano escolar. Eu e meu cabelo curto, castanho dourado, de franja. A pasta de couro marrom, herdada de uma prima. A saia de pregas com suspensório, a blusa branca, os sapatos pretos de cadarço. Após o apito da fábrica, minha mãe no portão até que eu sumisse na esquina. Eu a pé, sozinha, atrasada, a caminho da escola. Onde aprendi a ler na Cartilha Moderna. E logo passei aos gibis do Pernalonga,“único coelho que ganhou o ‘Oscár’ ” (“que será isso?...”, pensava). Então devorei Mary Poppins, o livro.
A foto dos meninos de Soweto trouxe a lembrança do meu aniversário. Tia Edith me levou para escolher um brinquedo na loja ao lado do dentista. O sonho de consumo das meninas era a Guigui. Aproximando os bracinhos, ela gargalhava. Mas avistei Mary Poppins, a boneca. Com seu penteado, sua bota cor-de-rosa, sua sombrinha, seu vestido longo e rodado. Fiquei encantada. O vendedor e minha tia tentaram de todas as maneiras me convencer de que a outra era melhor. Inútil.
A foto dos meninos de Soweto trouxe a lembrança do que teria sido – mas não foi - minha primeira festa junina na escola, logo após meu aniversário. Uma dessas lembranças renegadas, separadas de mim como se fossem de outra pessoa. A duas semanas do evento, a professora pediu que as crianças formassem pares para a quadrilha. Sobramos eu e Waldomiro, único menino negro da turma. Isto não se aprende na escola, mas ali tive um gesto espontâneo do mais genuíno racismo infantil: sem muito alarde, simplesmente disse que não queria dançar com o colega. A professora insistiu, eu disse que não queria mais dançar. Não fui à festa, e nunca soube se alguma outra menina dançou com ele.
A foto dos meninos de Soweto me trouxe um remorso tardio. Imagino um menino negro rejeitado por uma menina branca aos seis anos de idade. Que influência teria exercido o incidente na sua formação? Guardaria lembrança tão ruim? Qual seria sua profissão? Teria casado, tido filhos? Estaria vivo? Não me lembro de seu rosto, não tenho qualquer fotografia.
Que fim levou Waldomiro? - penso, olhando a foto dos meninos.
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 *"Liberdade, Igualdade e Fraternidade", foto de 1998 (não é a foto do jornal, mas é muito mais bonita)
Obs.: com anuência do fotógrafo (obrigada!)

3 comentários:

  1. Preconceitos quaisquer são socialmente construídos, não estão em nossa essência.

    Todos nós, em alguma fase, fomos rejeitados ou rejeitamos de alguma forma, e cruelmente isso fortalece, porque não acho que estejamos preparados para crescer sem dificuldades e chateações, pois vencer e superar as frustrações, rejeições, tristezas, medos e perdas, constitui as maiores vitórias que o ser humano pode ter ao longo de sua jornada.

    Bjos
    Didi

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  2. Belos textos. Comecei lendo De Filmes e de Lágrimas, mas antes que pudesse fazer meu primeiro comentário vi a foto dos meninos de Soweto e continuei lendo. Ao final parei. Dessa vez mais comovida do que antes, por causa do Waldomiro e, sobretudo, por causa das suas lembranças. Tão reais. O Waldomiro pode não lembrar da história; pode ter se sentido como qualquer outro garoto rejeitado, de qualquer cor... E a boneca, você curtiu?

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  3. A Mary Poppins era a minha favorita. Aqui, assim como naquele filme sobre o poeta Manoel de Barros, "só dez por cento é mentira"...

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