terça-feira, 18 de maio de 2010

Sangue azul


Na estação de Piedade, aguardava a composição para D. Pedro II. Avistou lugar numa ponta de banco, e lá acomodou sua derrière com certa folga.

Tirou um livro da bolsa. Trem demorado, leu algumas páginas.

O homem de estatura média, nem gordo nem magro, foi se aproximando. Cambaleante, e com hálito característico, fez menção de sentar-se ao seu lado.

Ora, pensou, se ele tentasse sentar naquele espaço mínimo, no estado em que se encontrava, fatalmente cairia no chão. Não era preciso ser gênio em Física para saber que a única maneira dele ocupar aquele banco era sentando pelo menos uma banda em cima dela. Ergueu-se num pulo, e foi se afastando devagar.

- Voocê aiií...
Fez que não era com ela.
- Levantou pooorrr quê? Porrr que levantou? Eu posso sabeeer?...
A moça olhou para a frente, e continuou caminhando ao longo da plataforma. O homem a seguiu.
- Tá pensando que tem o sangue azzuul?...
Andou mais um pouco.
- Teu sangue né azul, nããão... Teu sangue é verrrmelho igual ao meeeu...
Estavam quase no fim da plataforma. Havia um grupo de pessoas ali. Então a estudante fez o que não se aconselha nessas horas. Com a voz mais doce de que era capaz, disse a ele:
- Moço, eu me levantei porque não tinha espaço pro senhor sentar. Eu me levantei pra que o senhor pudesse sentar.
Silêncio.
O homem arregalou os olhos e a boca, assombrado.
- Ôoo... Você é... uma criatura... maravilhooosa...
Ela, séria.
- Me perdooa... Você me perdooa?...
Risos em volta.
- Uma criatura... maravilhoosa... Me perdooa...
O trem chegou. A jovem entrou correndo. A última frase que ouviu foi “Lábios de meeel...”.
O homem permaneceu na estação, aguardando o trem para Santa Cruz.


domingo, 2 de maio de 2010

Um domingo machadiano


Acordei tarde. Após um banho muito quente, tomei café e encarei os classificados. Circulei anúncios, fiz algumas ligações e parti para a única visita do dia.

Na Machado de Assis, calçada fronteira à sapataria, uma senhora de idade avançada parou subitamente e olhou para o chão. Outra mulher abaixou-se aos seus pés. A cena me atraiu pelo inusitado: cansei de ver pessoas ajudando idosos desconhecidos a atravessarem a rua; amarrando o tênis, era a primeira vez.

Enquanto esperava o elevador do Edifício Renânia, somei os algarismos do prédio para ver se a numerologia aprovava. Entrei no apartamento. Fui direto à janela, estranhamente gradeada. Conferi o sol e a vizinhança. Fiz a vistoria de praxe: abri torneiras, pressionei a descarga, observei piso, azulejos, disposição dos cômodos. Suspirei. Nem a numerologia, nem eu.

Manhã quase perdida, decidi visitar meu irmão. Atravessei o Largo do Machado e, no ponto em frente à igreja, senti o frio de julho. Comecei a vestir meu casaco. Primeira manga, ok. Passei a bolsa para o braço vestido e procurei encaixar a outra. Na terceira tentativa, uma voz suave me disse: “Deixa que eu te ajudo”. Olhei para o lado e a vi: uma mulher de aparência frágil, talvez com idade para ser minha avó. Meio constrangida, aceitei.

Começamos a conversar. Tinha levado frutas para a irmã, que, após fraturar o fêmur, não andava mais. “Ela não pode operar por causa da idade [pausa de suspense]: noventa e oito anos”. Não resisti à indiscrição... “Completei noventa”, respondeu. “Puxa, a senhora está ótima!”. “É de família”, acrescentou, entre humilde e orgulhosa.

Tinha quatro filhos, seis netos, oito bisnetos. Morava só. Falou da preocupação com o bem-estar da irmã, também viúva, porém sem filhos. Não conseguiu convencê-la a dividirem o mesmo espaço. Procurou algumas casas de repouso. Os idosos lhe pareciam tristes. A irmã, então, permaneceu no próprio apartamento com uma acompanhante.

Já conhecia parte de sua história quando o ônibus parou um pouco longe. A senhorinha caminhou no seu passo miúdo, e subiu sem qualquer ajuda. Continuamos conversando durante a curta viagem. Contei da mudança e da porção de apartamentos que vira. Ela comentou o quanto gostava de andar. “Este tênis não é bonito, mas é muito confortável”. Nesse momento, reconheci a idosa da Machado de Assis.

Saltamos. Mostrei o prédio de meu irmão. Dona Helena se apresentou e me apontou o edifício onde morava. “Estou sempre por aqui, passeando com minha cachorra”. O nome da labradora - impossível esquecer... - era Capitu.